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ENTREVISTA: DIREITO ANIMAL E O PRINCÍPIO DA SENCIÊNCIA
O promotor de justiça Laerte Fernando Levai, de São José dos Campos, SP, fala de sua proposta de inclusão da senciência como princípio jurídico. Levai é Mestre em Direito pela UNISAL/Lorena, Especialista em Bioética pela FM/USP. Pesquisador do Diversitas – Núcleo de Estudos das Diversidades, das Intolerâncias e dos Conflitos, ligado à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP e autor de “Direito dos Animais” (Mantiqueira, 2004).
Pode nos definir o Princípio da Senciência?
Em julho de 2012 um renomado grupo de neurocientistas, então reunidos na Universidade de Cambridge para o Simpósio sobre a Consciência em Animais Humanos e Não Humanos, proclamaram ao mundo aquilo que todos já sabiam e que o direito ainda reluta em admitir: os animais são seres sensíveis, capazes de sentir e de sofrer. Tal constatação, de relevante interesse jurídico, vai ao encontro do mandamento constitucional brasileiro que veda a submissão de animais a crueldade (artigo artigo 225 par 1o, VII, parte final) e ao dispositivo da Lei ambiental que criminaliza a prática de abusos, maus tratos, ferimentos e mutilações (artigo 32 da Lei 9.605/98). Deste modo, ao agregar numa única palavra os conceitos de sensibilidade e consciência, o vocábulo senciência acaba se tornando palavra-chave para a discussão ética sobre os animais e seus direitos. A Declaração de Cambridge, conjugada ao nosso dispositivo constitucional protetor da fauna, serve como fundamento de um novo princípio geral de direito voltado aos animais como sujeitos jurídicos: o princípio da senciência.
Ainda definindo conceitos, o que entende por biocentrismo?
O biocentrismo, enquanto modo filosófico de enxergar o direito ambiental, é o paradigma mais adequado para alcançar as mudanças sonhadas. Seus preceitos põem o homem, os animais e a natureza em igualdade de condições no mundo natural. Trata-se de uma visão que respeita a vida em sua singularidade existencial e que reconhece o planeta como um sistema orgânico onde tudo depende de tudo, numa íntima conexão entre os ecossistemas, a biodiversidade e as espécies que dela fazem parte. Atribuir um valor central à vida surge como um necessário contraponto ao antropocentrismo predatório que, na sociedade de consumo, exclui da esfera de consideração moral humana as criaturas que possuem configuração biológica diversa e que, em razão dessa contingência, acabam desrespeitadas em sua dignidade.
Qual o conjunto normativo que dispomos no momento sobre o Direito Animal?
A tutela legislativa pode ocorrer de maneira direta, pela edição de leis pontuais voltadas para o animal em si ou então por via oblíqua, com a normatização ecológica garantidora de espaços territoriais protegidos e refúgios da vida silvestre. Sob a inspiração dos mandamentos constitucionais do artigo 225, a Lei de Crimes Ambientais dedicou um capítulo específico à fauna silvestre, doméstica ou domesticada, nativa ou exótica, enquanto a legislação cível erigiu um amplo sistema de defesa ambiental a partir da criação das unidades de conservação. Apesar disso os atentados à fauna ocorrem a todo instante, demonstrando que a mera existência de leis nada resolve se o país não promover, paralelamente, uma política de educação ambiental que fomente noções de ética e respeito pela vida humana e dos animais.
Pode nos falar sobre a concepção atual científica da similaridade entre nós humanos e os animais? Como isto muda o Direito?
Em sua derradeira obra, “A expressão das emoções no homem e nos animais” (1872) Charles Darwin antecipou as principais questões objetos de interesse pelos etologistas modernos, mostrando que o animal expressa sentimentos diversos como alegria, tristeza, raiva, ternura, apatia, medo ou sofrimento. As observações do naturalista inglês, que se opuseram à perniciosa concepção cartesiana de que os animais seriam criaturas desprovidas de mente (teoria do animal-machine), restaram confirmadas pelos cientistas do século XX. Mais recentemente, estudos de neuroanatomia comparada e de similitude genética em análise de DNA reforçaram a conclusão de que a nossa diferença em relação aos animais é apenas de grau. A Declaração de Cambridge mostra-se reveladora no sentido de que a essência de homens e animais sencientes é a mesma, o que muda é apenas a aparência. Segundo Philip Low, que a subscreveu, as mesmas estruturas cerebrais que produzem a consciência em humanos existem nos animais, seguramente nos mamiferos e nas aves, os quais possuem substratos neurológicos que lhes permitem experimentar estados emocionais diversos. O direito, assim como a bioética, não pode permanecer indiferente a esses fatos.
Poderia nos falar mais sobre a aplicabilidade da Lei federal 9.605/98, em particular o artigo 32?
O legislador ambiental, ao criminalizar as práticas cruéis, reconheceu que os animais são criaturas sensíveis. Isso ajuda a desconstruir a doutrina civilista que trata o animal como coisa, bem semovente ou mercadoria de consumo, assim como o especismo penal que o considera mero objeto material da conduta humana. O artigo 32 da Lei 9.605/98, apesar da crítica que se faz à brandura de suas penas, reforça a tese de que os animais devem ser considerados sujeitos de direito. Tal interpretação vem ganhando espaço cada vez maior nos tribunais, como se viu este ano no rumoroso caso em que um mulher foi condenada a 12 anos e 6 meses de detenção por torturar e matar dezenas de gatos e quatro cães, tendo a justiça paulista reconhecido o concurso material de delitos, numa decisão história que houve por bem considerar cada animal como vítima.
Quais são as lacunas que no momento são consideradas insuperáveis? Quais são os efeitos?
Afora a circunstancialidade da reprimenda cominada aos malfeitores, o principal obstáculo para que os animais sejam considerados sujeitos jurídicos é de ordem cultural. Enquanto se continuar ensinando que a finalidade da fauna é o benefício que seu uso pode trazer ao homem, mais difícil será superar a visão antropocêntrica que instrumentaliza a vida animal e torna o direito excludente. Afinal, o princípio da dignidade humana não se realiza em plenitude à custa da indignidade animal. E como os consagrados princípios de direito ambiental (precaução/prevenção, poluidor/pagador, razoabilidade/proporcionalidade) ainda se mostram insuficientes para a defesa dos animais, há que se dar um passo adiante. O reconhecimento da senciência animal é, acima de tudo, uma questão de princípio. Um princípio ético que requer um princípio jurídico.
Pode nos falar mais sobre a Lei Arouca (Lei federal 11.794/08)?
A Lei Arouca é um exemplo de lei permissiva de comportamento cruel, ao reafirmar a experimentação animal como “método ofical de pesquisa científica”. Em nenhum momento ela admite a possibilidade de o modelo vivo animal ser substituído por métodos alternativos de ensino e pesquisa, como preconiza o artigo 32 par. 1o da Lei de Crimes Ambientais. Também não se preocupou em assegurar o legítimo direito à objeção de consciência aos alunos das faculdades de ciências biomédicas ou a funcionários dos laboratórios de pesquisa que porventura recusem participar, por motivos ideológicos ou de convicção filosófica, dos procedimentos vivisseccionistas. Paradoxalmente, o próprio legislador admite a senciência das “cobaias” utilizadas nos testes científicos pelo grau de adjetivação do seu sofrimento. O artigo 3o, inciso IV, recomenda morte humanitária aos animais nos casos de “mínimo sofrimento físico ou mental”; o artigo 14, par 1o, sugere a aplicação de eunatásia quando ocorrer, no experimento, “intenso sofrimento aos animais”. Já o artigo 15 possibilita ao pesquisador restringir ou proibir experimentos que importem “elevado grau de agressão aos animais”. Isso tudo demonstra uma realidade inescondível que não pode mais permanecer oculta sob o véu da ignorância.
Como caminha a doutrina em relação aos direitos animais?
Nas últimas décadas surgiram, no Brasil, vozes contrárias ao discurso preconceituoso que exclui do âmbito da justiça as demais espécies. Juristas especializados em Direito Animal passaram a escrever sobre o tema, como Edna Cardozo Dias, Heron Santana Gordilho, Daniel Braga Lourenço, Luciano Santana, Fabio de Oliveira, Eduardo Cabetti, Danielle Tetü Rodrigues, João Marcos Adede y Castro, Fernanda Medeiros, Tagore Trajano, dentre outros. No campo do direito ambiental, após o pioneirismo de Edis Milaré em questionar a insanidade do antropocentrismo vigente, Tiago Fensterseifer, José Robson da Silva e Luis Paulo Sirvinskas surgem como principais nomes cujo olhar se abre, generosamente, para outras realidades sensíveis. Esses autores todos têm inspirado muita gente que se dedica, de corpo e alma, à causa dos animais. Pelo que se tem visto em termos doutrinários, a revisão do estatuto jurídico dos animais - de coisa móvel para ser sensível - torna-se urgente.
Existe um posicionamento da jurisprudência nessa área?
A jurisprudência brasileira revela, pelo teor das decisões já proferidas em centenas e centenas de ações penais ou civis ajuizadas pelo Ministério Público em favor da fauna (denúncias por abusos e maus tratos dos mais diversos e/ou ações civis públicas contra caça, rodeios, vaquejadas, zoológicos, circos, centros de controle de zoonoses, etc) que o direito animal já é uma realidade no mundo jurídico. As decisões dos tribunais, entretanto, ainda se mostram divergentes, ora beneficiando os animais maltratados, ora legitimando a crueldade humana. Se há quase vinte anos o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade da farra do boi, hoje o mesmo questionamento recai sobre uma lei cearense que reconhece a vaquejada como prática cultural. Dois temas, contudo, ainda permanecem tabus no direito: a vivissecção e o agronegócio, justamente as áreas em que os índices de agressão sobre os animais alcançam proporções inimagináveis. Mas há honrosas exceções: na década passada a justiça de São José dos Campos, em acordo judicial, proibiu um curso médico que realizava experimentação animal (traumatologia em cães) e julgou inconstitucional, por sentença a lei paulista que autorizava a jugulação cruenta de bovinos (abate muçulmano). Deste modo, sempre que houver um conflito de normas constitucionais (dispositivo anticrueldade x prática cultural) a solução mais justa deveria levar em conta a relevância da dor concreta que recai nos animais, que prepondera sobre um interesse humano de natureza abstrata. O conflito de normas é apenas aparente, podendo ser resolvido pelo princípio da senciência.
Quais são sugestões para melhor a tutela jurídica dos animais?
Reconhecer no animal seu valor intrínseco, sua presença sensível e consciente, a realidade da dor que deveras sente, é enxergá-lo sob um viés diverso da maioria dos diplomas jurídicos antropocêntricos onde o único sujeito de direitos e usufrutuário da natureza é o ser humano. A ética ambiental não estabelece barreiras entre as espécies e a mesma noção do justo que a inspira deve ser considerada em relação a todos os seres vivos. A Declaração de Cambridge abriu caminho para uma postura mais compassiva ao reconhecer cientificamente a senciência nos mamíferos e nas aves, além do polvo, restando às outras espécies ainda não contempladas o benefício da dúvida. Se o direito dos animais é movido pelo mesmo espírito do justo que deve inspirar o direito dos homens, a senciência surge como sua pedra de toque. Nestes tempos de perplexidade e violência, em que a competição se sobrepõe à solidariedade, em que o prazer do consumo vale mais do que a vida consumida, em que a vaidade e a ambição esmagam as utopias, é preciso agir com benevolência perante o Outro. Saber enxergar, em cada ser, a insólida aventura do efêmero, a iluminação que se irradia da noite mais profunda, a verdade que se traduz em olhares, gestos, cores e sons. Ver os animais como seres sensíveis, nossos companheiros de tempo e de espaço, não como meros recursos de uma natureza que o homem ainda teima em destruir.
Nota do Olhar Animal: Entendemos que a visão biocêntrica ainda é limitada para fazer valer os interesses dos animais e que a verdadeira mudança de paradigmas ocorrerá quando for considerado o senciocentrismo (ou sencientocentrismo). Recomendamos a leitura do artigo Sencientocentrismo X Biocentrismo e alguns do site Animal Ethics: Why we should give moral consideration to sentient beings, rather than living beings / Why we should give moral consideration to individuals rather than species / Why we should give moral consideration to sentient beings rather than ecosystems / The relevance of sentience: animal ethics vs speciesist and environmental ethics.
http://www.olharanimal.org/pensata-animal/autores/luciano-carlos-cunha/633-sencientocentrismo-x-biocentrismo
SENCIENTOCENTRISMO X BIOCENTRISMO
Por Luciano Carlos Cunha
Considere a seguinte pergunta:
“Por que adotar o critério da senciência, e não, o critério ‘estar vivo’?”
Ou seja, essa pergunta quer saber por que respeitar apenas aqueles seres capazes de ter experiências e não, respeitar tudo o que é vivo (vegetais, fungos, bactérias, vírus, etc.). Em resumo, a pergunta em questão quer saber que critério de consideração moral adotar: o da senciência ou o biocêntrico. Muitas vezes, a defesa dos animais não humanos é vista como uma posição biocêntrica. Abaixo, tento explicar por que não é esse o caso:
Por que adotar o critério da senciência? A resposta é que o fato de um organismo ser senciente (ou seja, capaz de experimentar sensações) é uma condição necessária para que haja alguém “dentro” desse organismo, alguém que prefere estar em determinados estados (experiências positivas) e não em outros (experiências negativas). Os organismos meramente vivos, em termos do que é relevante para a moralidade de como tratá-los, são como objetos artificiais tais como tijolos, sapatos, meias, camisetas: não há alguém “ali dentro” a quem respeitar. Assim sendo, não há como prejudicar esse objeto, já que ele não prefere se encontrar em um estado e não em outro (já que não há alguém que é esse objeto e, portanto, esse objeto não experimenta nada).
Quando alguém fisga um peixe e o iça, por exemplo, uma razão para se considerar essa prática errada se dá porque ela causa sofrimento (portanto, causa uma experiência mental negativa) ao peixe. Quando alguém mata um ser senciente, mesmo sem causar dor, a razão para se considerar essa prática errada se dá porque ela impede que o ser em questão tenha experiências prazerosas (portanto, impede experiências mentais positivas). Compare por exemplo com quebrar um tijolo ou cortar uma laranja ao meio. Não há razão direta alguma (ou seja, razões que digam respeito ao objeto que diretamente é atingido pela ação) para se objetar a tais ações. Poderíamos objetar apenas por razões indiretas: alguém poderíamos ferir alguém ao cortar o tijolo ou a laranja, por exemplo. Isso é assim porque a laranja, assim como tijolo, não sente nada de negativo ao ser cortada e nem tal corte a impede de desfrutar coisa alguma de positivo (já que ela não é alguém, e, portanto, não é capaz de experiências). É possível dizer, por exemplo, que o tijolo “foi beneficiado” ao ser colado depois de ser destruído, ou que a laranja “foi prejudicada” por ter sido pisoteada, mas esse sentido é meramente metafórico, já que não há alguém “ali dentro”, que é a laranja ou o tijolo, que foi beneficiado ou prejudicado.
Se ainda tem dúvidas quanto às razões para se rejeitar o critério da vida e para se adotar o critério da senciência, considere o exemplo a seguir:
O filósofo Oscar Horta [1] oferece um exemplo, com vistas a defender que é a senciência, e não, a vida biológica, que é relevante quanto ao erro em matar. Esse exemplo valerá também, como veremos, para outras questões sobre prejudicar e beneficiar, e não apenas, a questão do matar. O exemplo é o seguinte: assuma por um momento que não haja nenhuma vida após a morte. Supondo que você esteja na posição de escolher entre:
(1) Morrer agora (sem nenhuma vida após a morte) ou;
(2) Ficar biologicamente vivo por mais vinte anos, na completa inconsciência (sem nenhuma sensação, nem mesmo sonhos), sem chance alguma de recuperar a consciência, e depois morrer (sem nenhuma vida após a morte).
A pergunta é: faz diferença do seu ponto de vista, o que acontecerá depois da escolha de alguma das duas opções? Obviamente não. De qualquer maneira, você, o indivíduo que habita aquele corpo, morre agora, quer escolha a opção 1 ou 2. Parece que toda diferença que podemos alegar a favor de alguma das duas opções apelará a preferências de amigos, parentes, ou às suas próprias preferências, enquanto ainda é senciente, quanto ao que fazer com o seu corpo (que são todas preferências de seres sencientes). Ou ainda, poderia-se apelar ao possível benefício para outros pacientes com relação à doação de órgãos, que também é apelar ao benefício para seres sencientes. Assim sendo, nesse exemplo, você – o indivíduo que habita aquele corpo – quer escolha a opção 1, quer escolha a opção 2, morre agora.
Mas, na segunda opção, o seu corpo continua biologicamente vivo. Se o biocentrismo estivesse correto, não apenas teríamos obrigação de escolher a opção 2 e respeitar tal corpo vivo mas vazio, mas, além disso, teríamos de dizer que o respeito por tal corpo vivo vazio teria de ser do mesmo grau que o respeito devido quando havia alguém a habitá-lo. Mas, novamente, faz sentido perguntar: de que maneira seria possível prejudicar literalmente esse corpo vazio, já que ele não valoriza se encontrar neste ou naquele estado? Assim sendo, o exemplo acima parece mostrar, ao invés, que é a capacidade para a senciência que é relevante moralmente no que diz respeito não somente ao erro em matar, mas a qualquer outra questão em que alguém tem a possibilidade de ser prejudicado ou beneficiado.
Notas:
[1] HORTA, Oscar. Por qué la Capacidad de Sufrir y Disfrutar es lo Importante. Ética Más Allá de la Espécie: La Consideración Moral de los Animales no Humanos, 2009. http://masalladelaespecie.wordpress.com/2009/11/20/la-capacidad-de-sufrir-y-disfrutar/
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