Consulta: A Organização Não-Governamental Movimento SOS Bicho de Proteção Animal solicita parecer sobre a vigência do Decreto 24.645/1934, que estabelece medidas de proteção dos animais.
Resposta:
Inicialmente deve-se destacar que a necessidade de análise da vigência (ou
não) do Decreto 24.645, de 10 de julho de 1934 (Decreto de Proteção dos
Animais) envolve a compreensão de sua natureza jurídica, de sua recepção
pela ordem constitucional inaugurada com a Constituição Federal de 1988,
e, em caso positivo, a forma pela qual se operou tal recepção.
O Decreto 24.645/1934 foi editado pelo Presidente da República Getúlio
Vargas, no ano de 1934. Em que pese em geral os decretos constituírem
atos regulamentares baixados pelo chefe do Poder Executivo com a função
de regulamentar as leis para viabilizar sua fiel execução (sem poder inovar
a ordem jurídica), o Decreto 24.645/1934 apresenta algumas peculiaridades
que não o enquadram nessa regra geral.
Essas peculiaridades decorrem do fato de que o Decreto de Proteção dos
Animais foi editado pelo Presidente Getúlio Vargas sob a égide do Decreto
19.398, de 11 de novembro de 1930, pelo qual, em seu artigo 1º , foi
instituído o Governo Provisório após a revolução de 1930, que no qual o
chefe do Poder Executivo (Presidente da República) assumiu as funções
Executiva e Legislativa do Governo Federal, até a promulgação de nova
Constituição (o que só aconteceu em 16 de julho de 1934), tendo dissolvido
o Congresso Nacional.
Nesse contexto, o Presidente da República assumiu não só a função de
Chefe do Poder Executivo, mas também o Poder Legislativo, atraindo para si
a função de estabelecer atos normativos com força de lei (em sentido
formal, ou seja, oriundas do Poder Legislativo).
Assim, em decorrência dos poderes acumulados pelo Presidente Getúlio
Vargas em decorrência da dissolução do Congresso Nacional, é possível
afirmar que o Decreto 24.645/1934, ao ser editado, apesar de levar o nome de Decreto, trata-se, na verdade, de ato normativo com força de lei em
sentido formal, posto que o Presidente da República apresentava poderes
para inovação da ordem jurídica através de seus atos normativos.
Não é por outro motivo, inclusive, que o Decreto de Proteção dos Animais
criava não só proibições contra atos de maus tratos, mas estabelecia tipos
penais (art. 2º, caput) e conferia legitimidade processual para proteção dos
animais não só pelo Ministério Público, mas também às Sociedades
Protetoras dos Animais (art. 2º, §3º).
Esses dois atos legislativos (penal e
processual civil/legitimação processual) são típicos atos que somente
podem ser objeto de lei em sentido formal.
Pois bem, tendo sido editado na forma de decreto antes da promulgação da
Constituição Federal de 1934, é certo que o Decreto 24.645/1934 apresenta
“força de lei”.3
Estabelecido o status jurídico do decreto dentro da hierarquia das leis
(Constituição, leis, decretos, atos normativos da administração pública, etc)
deve-se destacar que por seu conteúdo o Decreto 24.645/1934 não foi
revogado por nenhuma das Constituições Federais que o sucederam, já que
não contrariava o disposto em nenhuma delas. É de se destacar que de
1934 a 1988 todas as Constituições editadas (1934, 1937, 1946, 1967 e
1969) previam que o direito de propriedade não é um direito ilimitado (tal
como o direito sobre os animais), que deve cumprir sua função social, nos
termos da lei4
.
Assim, é possível afirmar que o Decreto 24.645/1934 não foi revogado por
nenhuma das constituições que sucederam sua edição.
Neste espírito, tal como suas precedentes (mas de forma mais explícita e
incisiva), a Constituição Federal de 1988 incorporou os mandamentos
relativos à função social da propriedade (artigos 5º, XXIII e 170, III, além
de outros que não se aplicam diretamente ao caso).
Dessa forma, tal como
nas ordens jurídicas anteriores, a Lei poderia dar contornos ao direito de
propriedade de forma que os atos de maus tratos contra os animais fossem
excluídos daqueles contemplados nos direitos dos proprietários dos animais
(e mesmo seus simples possuidores).
Numa perspectiva dominial da questão, é possível, então, afirmar que as
restrições contra os atos de maus tratos foram perfeitamente recepcionados
pela Constituição Federal de 1988 (as características específicas do
fenômeno da recepção de normas anteriores à Constituição será objeto de
considerações abaixo).
Mas a Constituição Federal de 1988 foi além das questões dominiais. Em
seu artigo 225, §1º, VII determinou ao Poder Público que, para garantir a
todos o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à
sadia qualidade de vida, deve proteger a fauna (em sentido amplo,
incluindo os animais silvestres, exóticos, domésticos ou domesticados),
sendo vedadas, na forma da lei, os atos que submetam os animais à
crueldade (maus tratos). Para a Constituição Federal (e os direitos por ela
garantidos), não existe meio ambiente ecologicamente equilibrado e não há
efetividade na garantia desse direito em uma sociedade na qual os animais
são submetidos à crueldade.
Ora, a Constituição Federal trouxe regra segundo a qual, na forma da lei,
são vedadas todas as condutas consideradas cruéis para com os animais.
Em decorrência disso, as normas de vedação dos atos cruéis contra animais
aplicam-se tanto aos proprietários como aos não proprietários dos animais
(ou seja, todos, inclusive o Poder Público).
Neste contexto, o Decreto 24.645/1934, com força de lei, veio ser uma das
normas a regular essa vedação contra os atos de maus tratos (juntamente
com a Lei 9.605/1998 – Lei de Crimes Ambientais, em seu artigo 32).
Dessa forma, é possível afirmar que o Decreto 24.645/1934 é, do ponto de
vista material (conteúdo), compatível com a atual ordem constitucional,
pois ele enumera, em seu artigo 3º, as condutas consideradas atos de maus
tratos contra os animais (atos de crueldade), dentro dos limites da
Constituição Federal.
Por outro lado, o fato do Decreto 24.465/1934, do ponto de vista formal (da
forma de sua aprovação) ter sido aprovado em circunstâncias peculiares,
pouco importa para o fenômeno da recepção das normas existentes
anteriormente a atual ordem constitucional. Tendo sido aprovado com força
de lei e obedecidas as regras para edição de normas existentes à época, o
Decreto de Proteção dos Animais mantém essa força de lei ao ser
recepcionado pela ordem constitucional de 1988, pouco importante o nome
dado a ele5
.
O fenômeno da recepção das normas existentes antes da nova ordem
constitucional decorre do princípio da continuidade da ordem jurídica, sendo
irrelevante para esse fenômeno os aspectos formais da aprovação da norma
recepcionada, sendo relevante apenas a compatibilidade de conteúdo.
Segundo Gisela Maria Bester (Direito Constitucional – Fundamentos
Teóricos, vol. I, Manole, 2005, p. 208/209), no caso da Constituição Federal
de 1988, “em função do princípio da continuidade da ordem jurídica
precedente e do princípio da incidência imediata das normas constitucionais,
é evidente que (...) são tácita e automaticamente recepcionadas todas as
normas infraconstitucionais que não são incompatíveis com a nova
Constituição”. Prossegue a autora, no que toca ao aspecto formal da
recepção de normas, basta que a norma recepcionada tenha sido compatível com a ordem constitucional que regeu o processo legislativo que
a editou (p. 209).
Assim, é possível afirmar, sem sombra de dúvida, que o Decreto
24.645/1934 apresenta natureza jurídica de lei ordinária (lei em sentido
formal) e que foi recepcionado nessa qualidade pela Constituição Federal de
1988.
Dessa constatação é possível extrair uma relevante conseqüência: sendo lei
ordinária, o Decreto 24.645/1934 (integralmente ou seus dispositivos
isolados) somente podem ser revogados por outra lei ordinária. Em que
pese se denominar ‘decreto’, o Decreto 24.645/1934, por sua natureza
jurídica, não pode ser revogado por outro decreto.
Até a presente data não se registra qualquer revogação expressa do
Decreto 24.645/1934 por qualquer lei ordinária aprovada pelo Congresso
Nacional. Destaque-se, apenas, que os dispositivos que estabelecem ilícitos
penais (crimes) e suas respectivas penas foram revogados implicitamente
pelo artigo 32 da Lei 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais), que veio a
regular a mesma matéria posteriormente.
Isso significa que apenas os artigos 2º (caput e §§1º e 2º, permanecendo
em vigor o §3º), 8º, 10, 11, 12 e 15, do Decreto 24.645/1998 foram
revogados implicitamente pela Lei de Crimes Ambientais. Os demais artigos
do Decreto de Proteção dos Animais continuam em pleno vigor, regulando a
questão das condutas consideradas como maus tratos contra os animais.
Em conclusão, é possível afirmar que:
a) O Decreto 24.645/1934 foi editado com força de lei ordinária e não
como simples decreto (regulamento de lei), em que pese sua
nomenclatura;
b) O Decreto 24.645/1934 foi recepcionado pela Constituição Federal de
1988;
c) Somente lei ordinária possui “força” para revogar o Decreto
24.645/1934, em virtude de sua natureza de lei ordinária;
d) Não existindo revogação expressa, os dispositivos do Decreto
24.645/1934 que não foram revogados pela Lei de Crimes Ambientais
continuam vigentes.
É o parecer.
Leonardo Zagonel Serafini * OAB/PR 35.338
* Mestre em Direito Econômico e Social pela PUC/PR. Especialista em Direito Socioambiental pela PUC/PR. Assessor Jurídico do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado do Paraná. Membro da Comissão de Meio Ambiente da OAB/PR. Advogado em Curitiba/PR.
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Notas
1 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) IV – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir decretos e regulamentos para sua fiel execução; (...) (Constituição Federal de 1988)
2 Art. 1º O Governo Provisório exercerá discricionariamente, em toda sua plenitude, as funções e atribuições, não só do Poder Executivo, como também do Poder Legislativo, até que, eleita a Assembléia Constituinte, estabeleça esta a reorganização constitucional do pais.
3 Essa “força de lei” também é presente em outras normas editadas naquele período, como o Código de Águas (Decreto 24.643/1934, ainda parcialmente em vigor) e o antigo Código Florestal (Decreto 23.793/1934, totalmente revogado pelo atual Código Florestal – Lei 4.771/1965).
4 Vide: artigo 113, n.º 17 da Constituição de 1934; artigo 122, n.º 14 da Constituição de 1937; artigo 147; artigo 157, III da Constituição de 1967; e artigo 160, III da Constituição de 1969 (Emenda 01/1969)
5 Esse é o caso do Código Tributário Nacional que, apesar de ter sido aprovado como lei ordinária (Lei 5.172/1966), foi recepcionado como lei complementar, nos termos do artigo 146 da Constituição Federal, sendo atualmente tratado como Lei Complementar.
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