O uso de animais para o entretenimento é rodeado por controvérsias e justificativas que apelam para um suposto direito que o ser humano possui para explorar as outras espécies, não apenas para este fim, mas na ciência e na alimentação. No debate, a prática de montaria em bois ou cavalos envolve maus-tratos e sofrimento. Para esclarecer a questão, entrevistamos Alex Peguinelli, advogado. Ele nos contou com detalhes a verdade sobre o rodeio.
“Não resta uma dúvida sequer de que a prática de rodeios é inconstitucional e ilegal.”
Alex Peguinelli já participou de uma investigação do grupo V.I.D.A. (Veículo de Intervenção dos Direitos dos Animais) nos rodeios de Assis e Tarumã, em São Paulo. O grupo teve acesso juridicamente permitido aos recintos do rodeio, constatando inúmeros maus-tratos, incluindo a utilização de instrumentos que feriam os animais. A investigação completa pode ser conferidaaqui.
Que tipo de maus-tratos os animais sofrem em rodeios?
Vários estudos realizados comprovam os maus-tratos causados aos animais em rodeios. No entanto, nenhum deles teria sido necessário, se utilizássemos o bom senso e deixássemos de tratar animais não humanos como meros recursos ou objetos, subjugados à nossa vontade.
Mas bem, vamos aos maus-tratos.
Além da violência e agressividade presente nos treinamentos e nas provas rotineiras, ainda são utilizados instrumentos (de tortura), tais como o sedém (que comprime região sensível do animal na qual se localiza parte dos intestinos, além do prepúcio – onde se aloja o pênis), as esporas (pontiagudas ou não, são acopladas às botas dos peões, servindo para golpear o animal), a peiteira (amarrada ao redor do corpo, causam enorme pressão e desconforto), o polaco (sinos com a serventia de irritar os animais), objetos pontiagudos (pregos, pedras, alfinetes, arames que são colocados no sedém ou sob a sela do animal), choques elétricos ou mecânicos, substâncias abrasivas (pimenta ou terebintina que são introduzidas no corpo do animal para causar ainda mais desconforto), além da descorna (quando se retiram os chifres do animal, geralmente por meio de um serrote e sem nenhum anestésico) e do posterior assassinato desses animais, quando já estão velhos ou incapazes de cumprir sua função na arena.
Ou seja, além de torturados psicologicamente, por estarem inseridos em um ambiente de muitíssimo estresse, esses animais também são mutilados fisicamente, passando pelas mais diversas formas de exploração.
Não precisamos dizer que está mais do que comprovado que os animais possuem uma estrutura orgânica sensível e uma complexa configuração morfofuncional do sistema nervoso. Assim, os sinais fisiológicos e comportamentais exibidos pelos animais nos treinamentos e provas de rodeios são coerentes com a vivência de dor/sofrimento.
Ou seja, para espanto geral das pessoas que ainda são prisioneiras do pensamento cartesiano, sim, os animais são capazes de sentir. E, no caso dos rodeios, tudo o que sentem é um estresse psicológico muito forte e intensa dor física.
“A menos que fôssemos capazes de diagnosticar algum tipo de inclinação masoquista nestes animais, jamais poderíamos dizer que eles ‘gostam’ de estar em constante estresse, sofrerem mutilações, maus-tratos e até mesmo serem mortos.”
A lei permite os maus-tratos em rodeios?
Pelo contrário, não resta uma dúvida sequer de que a prática de rodeios é inconstitucional eilegal.
Primeiro por ser totalmente contrária ao exposto no artigo 225, §1º, VII de nossa Constituição Federal, que incumbe ao Poder Público o dever de: “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Como se não bastasse, a prática dos rodeios ainda fere o Decreto “getulista” (Decreto nº 24.645/34) – que diz ser dever do Estado tutelar os animais – e a Lei de Crimes Ambientais, que considera esses atos, em seu artigo 32, como crimes de maus-tratos. Além disso, o Decreto-Lei 3.688/41 (Lei das Contravenções Penais) aplica a pena em dobro quando a crueldade contra o animal não-humano é praticada em exibição ou espetáculo público.
Por fim, cabe ressaltar que a Lei 10.519/02, que dispõe sobre a promoção e a fiscalização da defesa sanitária animal quando da realização de rodeio e dá outras providências, é totalmente inconstitucional. Isso porque tal ordenamento tem por finalidade a tentativa de legalizar uma atividade condenada expressamente pela Constituição Federal, já que os maus-tratos e a crueldade cometidos com os animais nos rodeios são indubitáveis.
É preciso que se diga ainda que os Municípios têm competência para legislar protetivamente contra atividades que causam maus-tratos aos animais, sendo farta a lista de cidades que já proibiram tal prática por meio de Lei Municipal, vide Araraquara/SP, Botucatu/SP, Campinas/SP, Jaú/SP, Osasco/SP, Sorocaba/SP, Taubaté/SP, São Paulo/SP, Nova Friburgo/RJ, Rio de Janeiro/RJ, pra falar apenas de algumas, restritas à nossa região do país.
Muitos dizem que os bois “gostam” de participar dos rodeios. O que você acha disso?
Utilizar tal argumento é, no mínimo, um contrassenso, pra não se dizer uma hipocrisia.
Isso porque, primeiramente se nega o interesse do animal ao dizer que ele não é um ser capaz de ter sensações e, por este motivo, pra este animal é indiferente se participa ou não de uma prática capaz de gerar crueldade. Logo após, ao mesmo animal é atribuído um interesse, ou seja, é exteriorizada sua capacidade senciente em fazer escolhas de preferência.
O mesmo animal, que antes era incapaz de ter sensações e interesses, agora se torna apto a preferir participar das provas de rodeio, simplesmente porque, supostamente, “gosta”.
Segundo o Dicionário Aurélio, o verbo gostar significa: experimentar, gozar, ter simpatia e amor a, entre outros significados. Ora, como é possível atribuir e deixar de atribuir a senciência (capacidade de experimentar sensações e, portanto, ter preferências) a estes animais não-humanos ao mesmo tempo?
E, por fim, a menos que fôssemos capazes de diagnosticar algum tipo de inclinação masoquista nestes animais, jamais poderíamos dizer que eles “gostam” de estar em constante estresse, sofrerem mutilações, maus-tratos e até mesmo serem mortos.
“Uma prática, mesmo que cruel para com os animais, mas que faça parte de nosso bojo cultural, pode ser justificada?”
Algumas pessoas dizem que os rodeios fazem parte da nossa “tradição cultural”. Qual é a sua resposta para este tipo de afirmação?
A palavra rodeio tem origem no espanhol rodear, que significa juntar o gado. Em meados do século XVII, após a vitória do Estados Unidos da América na guerra contra o México, os colonos norte-americanos adotaram alguns “costumes” praticados pelos mexicanos. Entre esses novos costumes, estavam especialmente as festas e a doma de animais (os quais eram rodeados, por este motivo a origem etimológica da palavra rodeio).
Já no final do século XIX, o rodeio começou a adquirir as características que conhecemos hoje, tendo se desenvolvido e incentivado nos EUA.
Aqui no Brasil, bem diferente daquilo que a maioria das pessoas acredita, a prática do rodeio nada tem de cultural. Em nosso país, o rodeio se limitou a ser uma cópia do modelo norte-americano. Tanto que os primeiros bovinos criados por aqui eram da raça caracu, que são animais pesados e com enormes “guampas”, sendo impossível sua utilização para fins de rodeios, ou seja, impossível dizer que esta é uma cultura tradicionalmente tupiniquim.
No entanto, podemos partir da premissa de que o rodeio é sim uma “tradição cultural” brasileira e nos fazer a seguinte pergunta: uma prática, mesmo que cruel para com os animais, mas que faça parte de nosso bojo cultural, pode ser justificada?
O Superior Tribunal Federal já fez essa análise em 1997, momento em que julgou inconstitucional a prática da Farra do Boi, “tradicional” no sul do país. O ministro Francisco Rezek, ao se manifestar favorável à causa animal, afastou o argumento folclórico, pseudo-cultural, que tentava legitimar evidente crueldade: “Não posso ver como juridicamente correta essa idéia de que em prática dessa natureza (Farra do Boi) a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural, com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel para com os animais, e a Constituição não deseja isso”.
No entanto, não seria necessário um parecer favorável de nossa Suprema Corta para constatarmos o básico: não são todas as práticas/culturas que devem/merecem prosperar. Muito pelo contrário, algumas práticas/culturas já deveriam ter sido extintas há muito tempo: vide homofobia, machismo, elitismo, racismo e, também, o próprio especismo, que é a principal causa de toda exploração animal.
Isso porque nenhuma dessas culturas citadas respeita o princípio de igual consideração, ou seja, diante dessas culturas nunca teríamos os direitos básicos preservados para todos seres sencientes.
Você considera que o rodeio é um evento esportivo?
Depois da promulgação da Lei Federal 10.220/01, que instituiu normas gerais relacionadas à atividade de peão de rodeio, equiparando seu praticante ao atleta profissional, se tornou mais comum a assertiva de que o rodeio é um esporte.
No entanto, se formos procurar uma definição técnica de esporte, segundo a educação física, por exemplo, temos o seguinte “(esporte é) uma atividade metódica e regular, que associa resultados concretos referentes à anatomia dos gestos e à mobilidade dos indivíduos”. Ou seja, fica claro que esporte é toda e qualquer atividade praticada por um indivíduo dependendoexclusivamente deste ou dos membros de sua equipe.
Impossível assim chamar de esporte uma modalidade que dependa de animais não-humanos para sua prática, seja ela o rodeio, o hipismo, a equitação, entre tantas outras praticas que não geram nada além de maus-tratos aos animais.
Aliás, é até mesmo um contrassenso caracterizarmos tais atividades como esportivas, tendo em vista que o esporte, quando praticado tecnicamente, é considerado um bem à saúde, ao bem-estar e à vida de quem o pratica; enquanto os rodeios e outros “esportes” centralizados na exploração animal somente representam maus-tratos, mutilações, estresse e mortes.
“É urgente que mudemos nosso modo de pensar em relação à frente de ação direta.”
Por que é errado usar animais para fins de entretenimento?
Na realidade, poderíamos ter finalizado a pergunta antes mesmo de especificar os fins para os quais os animais nos servem de meios. A questão ficaria assim: por que é errado usar animais? Pronto, devemos ter em conta que o admissível e o inadmissível relativos a este questionamento não está previsto na finalidade, mas tão somente na afirmação “utilizar animais”.
É admissível que utilizemos de animais, independentemente de qual seja a finalidade?
A resposta sempre será um sonoro: não!
Assim como ensina Gary Francione, devemos estabelecer o princípio da igual consideração quando falamos de seres sencientes (capazes de experimentar sensações). Princípio este que deverá ser aplicado independente da espécie à qual o animal seja pertencente.
Ou seja, utilizar animais não é justificável, independente da hipótese ou finalidade, simplesmente porque os animais não nos pertencem, não são nossos objetos, não são nossos produtos, não são nossos recursos. Animais existem por sua própria finalidade e cabe ao ser humano intervir somente para auxiliar, nunca prejudicar.
A luta é pela proibição dos rodeios?
A luta não é somente pela proibição dos rodeios, mas pela abolição de qualquer prática que cause um prejuízo à vida, integridade física e psicológica e à liberdade de qualquer ser senciente.
Devemos levar em consideração que o movimento pelos Direitos Animais atua em diversas frentes, uma delas, a meu ver a mais importante, mas que consegue resultados somente a um longo prazo, é a frente da conscientização. Em conjunto com importante frente devemos aliar outras duas que também são basilares: a frente legislativa e a frente da ação direta.
É urgente que mudemos nosso modo de pensar em relação à frente de ação direta. A grande mídia sempre tenta passar a ideia de que esse tipo de ação é violenta e destrutiva. Não, essas ações não são violentas e muito menos destrutivas, muito pelo contrário. Ação direta é a maneira mais efetiva de intervir diretamente na vida de todos os seres que estão em constante sofrimento. A invasão de um laboratório, a destruição dos instrumentos de pesquisa e libertaçãodos animais aprisionados é essencialmente construtiva, pois dá a oportunidade de vida para esses seres que, inicialmente, estavam condenados à tortura e posterior morte. E, além disso, com o laboratório inativo, só para nos mantermos nesse exemplo, não há risco que diferentes animais tornem a ser torturados.
Isso sem falar que a ação direta é capaz de influenciar diretamente tanto na conscientização, quanto na legislação. Podemos tomar como exemplo o recente caso do Instituto Royal.
Devemos, no entanto, tomar um especial cuidado para que a frente legislativa seja capaz de propor leis efetivamente abolicionistas, e não leis meramente regulamentistas (termo utilizado por Luciano Cunha para definir a corrente tradicionalmente conhecida como Bem-Estarista).
De certa maneira, temos sorte, porque o país possui inúmeras leis que, em tese, são aptas a proteger animais não-humanos. Resta, apenas, interpretarmos essas leis de maneira abolicionista, de acordo com a teoria da igual consideração, para que os Direitos Animais sejam, de fato, efetivos em sua proposta.
Rodeio: A Crueldade Revelada
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