sexta-feira, 5 de abril de 2013

OS TRÊS GATINHOS - LAERTE LEVAI *


Os três gatinhos

29 de março de 2013 às 13:00

Era um homem solitário, enlutado da vida e aposentado de tudo. Na sua casa morta não havia janela para o sol e nem varanda para a lua. O quintal fora invadido pelo matagal que, de tão alto, tirava-lhe até a visão longínqua do horizonte sem fim. Naquele cenário de sombras os dias corriam devagar, iguais uns aos outros, sem acontecimentos marcantes ou motivos de júbilo.  Na noite de festa ali reinaram o silêncio e a desolação, espectros de um tempo em que se ouvia o tilintar de taças e a voz metálica dos bandolins.  Nada mais restava, nenhum indício da felicidade extinta nem ninguém junto àquele que se recolhera ao quarto frio da casa adormecida.  Nem risos ou canções ou coisa alguma. Teria Deus esquecido desse seu filho?
De manhãzinha bem cedo, antes mesmo de o sol nascer, o velho homem tem seu sono interrompido. – Diabos, que choradeira é essa vinda das bandas de lá? Ecos de bebês famintos?  Não mesmo. Aves desgarradas do ninho? Improvável. Pesadelo matinal que se prolongara cama afora? De jeito nenhum. Eram, sim, miados.  Gatinhos abandonados… Quem dera, três filhotes surgidos no terreno da frente, principezinhos felinos dentro de um reino de papelão. Um pretinho, um cinza e um todo branquinho. De olhos redondos e esfomeados, gritando sem parar com todo o fôlego de seus pulmõezinhos arquejantes. E agora, o que fazer com eles? Dar-lhes algum resto de comida ou deixá-los à própria sorte, que poderia tanto ser uma alma piedosa como a boca aterradora de um predador.
O homem ensimesmado decidiu, então, acolher os três gatinhos. Trouxe-lhes para dentro de casa, dividindo com eles o seu pobre abrigo escondido de tudo. Pão e vinho a lhes fortalecer o corpo. Quentura e aconchego para curar o espírito. E assim os pequeninos órfãos sobreviveram ao crime da mão anônima que os largou dentro do cesto flutuante. Semanas se passaram e eles, crescendo a olhos vistos, fizeram daquela casa triste um largo espaço de alegria. Quem poderia imaginar? Brincadeiras serelepes no tapete, cortinas balançantes, coral em sol maior na cozinha, patinhas dentro das cumbucas, correrias noturnas e, enfim, no cansaço da poltrona, o merecido sono dos justos. Ah, e também esse ronronar felpudo sobre o peito do homem carrancudo de coração mole.
Não fosse o gesto da manhã primeira, talvez nada disso estaria acontecendo. Aquele que vivia mergulhado na solidão cósmica tornou-se, da noite para o dia, o salvador e companheiro inseparável dos três gatinhos. Sempre que sai de casa ele não vê a hora de voltar, instrumento sob o braço e sorriso estampado no rosto, só para tê-los ao seu redor de rabinhos em pé e, então, mais uma vez, recomeçar…  Apenas uma coisa agora preocupava, verdadeiramente, o homem da casa morta que se fez toda florida: o mundo hostil que existia para além dos muros.
Fonte: www.anda.jor.br
*Laerte Fernando Levai é um promotor de justiça de São José dos Campos em São Paulo, também formado em jornalismo, que tem se destacado na luta pelos direitos animais, pela ecologiae contra a vivissecção. É também professor da Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Ambiental da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e conferencista sobre Direito dos Animais.

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