quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Matando seu cão de “estimação”, artigo de Sonia Felipe para ANDA

 A Questão de Ética - Sônia T. Felipe   -   http://www.anda.jor.br/

Matando seu cão de “estimação”

17 de dezembro de 2011

Certamente, a mulher de 22 anos que espancou e sufocou seu cão “amado” até a morte pode ter crises nervosas. Mas, dos 190 milhões de brasileiras e brasileiros, quem não tem uma crise nervosa de vez em quando? Daí a sair espancando um animal, a ex-mulher, a ex-namorada, o filho, a sogra, sufocando-os até à morte, é outra história. Essa merece outra explicação.
Vamos à cena: ela fez tudo isso na frente da bebê de dois anos. Praticar atos de violência na frente de bebês e crianças é muito comum, porque os adultos pensam que a criança não entende o que está vendo e não vai gravar nada em sua memória. Enganam-se. Mesmo não dominando a linguagem, os bebês gravam tudo o que acontece ao redor deles e com eles, em cada célula do corpo.

A memória do bebê está espalhada por todo seu corpo. Por não dispor da linguagem para referir o que se passa com ele, ele armazena o máximo de informações para orientar-se no ambiente familiar e social no qual cresce. O bebê conhece o estado emocional de cada membro da família, porque ele recebe pelo corpo todo as impressões que os familiares vão deixando, do tom de voz, à pressão do toque sobre sua pele.

Há pessoas traumatizadas que se lembram de coisas que lhes fizeram antes dos dois anos de idade. Mas nunca se lembraram dessas coisas antes de chegarem aos seus 40 ou 50 anos. Por quê? Porque, à medida em que a memória recente enfraquece, a memória passada vem com mais ímpeto à tona. Há pessoas que foram estupradas aos quatro anos de idade, mas só vão lembrar-se disso aos 40. Quanto mais traumatizadas, mais tardia será a lembrança. O que é pior.

Essa bebê viu sua mãe espancar o cão e arremessá-lo contra a parede. Viu o cão tremendo, em estado de choque. Viu que uma pessoa adulta, a quem ela percebe como fonte de proteção contra danos ao corpo, é capaz de fazer isso com um bebê. Para bebês, os animais são outros tantos bebês. Eles se identificam imediatamente com os bichos, por isso: são outros iguais a eles. A distinção conceitual será imposta muito mais tarde, quando a criança já ouviu centenas de vezes que ela é mais do que o cão, o gato, o porco fatiado no prato, o frango assado. Os adultos insistem nessas frases, tentando proteger a criança para que ela “não se comporte como um animal”. E assim crescemos. Pensando que os animais são uma coisa, nós, outra. Mas, quando éramos bebês, éramos simplesmente animais. Por isso a violência contra animais ou outras crianças na frente de bebês é devastadora, porque a criança perde a confiança nos adultos e isso vale para todos os adultos.

Essa mulher fez o que fez diante da bebê. Repito. A bebê viu sua mãe fazendo isso ao cão e viu o estado de destruição no qual o animal ficou. Também viu que o cão “sumiu”, porque desde aquele dia ela não o vê mais pela casa. Tudo isso é devastador para a formação da estrutura emocional, afetiva e moral dessa bebê.

Nos estudos realizados pelo médico alemão Tilman Furniss, publicados no livro Abuso sexual da criança, um dos alertas que ele faz é sobre o perigo de expormos as crianças à violência física, sexual ou de outra ordem, sem que haja nenhum adulto próximo a essa criança para resgatá-la a tempo de não ocorrer a fissura moral, sexual, emocional e afetiva sobre a qual o resto de sua personalidade será estruturada. Por que isso é de alto risco? Em mais de trinta anos de prática médica, atendendo em sua clínica crianças que sofreram abuso sexual no âmbito da família, Furniss arrebanhou registros para quantificar os desdobramentos dessa violência na idade adulta.

Quando uma criança presencia ou sofre violência física no âmbito da família, e quando ela não vê ninguém à sua volta para protegê-la dessa violência, sua estrutura psíquica fica abalada, ainda que ela nunca fale para ninguém do quanto isso a abalou. Na idade adulta, quando menos se espera, segundo os estudos de Furniss, aquelas crianças que sofreram violência e não tiveram ninguém para defendê-las, e especialmente as que foram testemunhas dessa violência mas não receberam cuidados porque não foram vítimas diretas, são as que correm mais risco, quando comparadas às crianças que não sofreram abuso na infância, de se tornarem igualmente abusadoras ou violentas.

Escrevo isso porque, no movimento de defesa dos animais, é comum ver comentários mandando fazer com esses adultos somatofóbicos o mesmo que eles fizeram aos animais. É o mesmo que pedir a pena de morte para alguém que matou. Bem, se estou disposta a matar alguém porque esse matou outra pessoa, em que me distingo dele? Então, por ver com muita frequência reações fascistas, isto é, que apresentam o assassinato como remédio para o mal, é que escrevo sobre a somatofobia.

Não conheço a biografia dessa mulher de 22 anos, que tem uma filha de dois, diante da qual ela fez o que fez sem o menor constrangimento. Precisamos perguntar: de quem ela aprendeu essa indiferença na prática da crueldade? Em algum ponto de sua história mental há uma ruptura. Se ela faz esse tipo de coisa na frente da bebê, é porque ela “sabe” fazer isso. Ora, aprendemos a fazer as coisas, “vendo alguém” fazê-las, ou “fazendo-as”. Quando sabemos fazer algo sem nunca termos feito antes um estágio, é porque vimos como isso se faz. Dominamos a técnica. Conhecemos as minúcias desse fazer.

Essa bebê agora já teve seu primeiro estágio de observação de como se mata um cão da família. Como provavelmente ela ainda não fala, ela ainda não sabe que “já” sabe como maltratar um cão. Pode ser que ela já tenha feito o estágio dela muitos meses antes do dia fatal. Então, ela já sabe como torturar um cão no dia a dia, na família. São informações muito fortes. É preciso dar muita ajuda a essa bebê, mesmo que agora ela não apresente sintomas das sequelas. Esses sintomas poderão manifestar-se bem mais tarde, por exemplo, quando ela tiver 22 anos, um bebê e um cão por membro da família, ou quando chegar aos 40 anos com alguma coisa sempre dando errado em suas vinculações afetivas familiares.

Tanto a vítima quanto a testemunha de abusos físicos, na infância, são candidatas “potenciais” para tornarem-se abusadoras e violentadoras. Escrevo candidatas potenciais, não candidatas na certa. É claro que muitas outras coisas ajudarão a determinar a formação psicológica dessa bebê. Mais tarde, ela poderá fazer uma releitura positiva disso, e tornar-se uma defensora dos animais de quaisquer espécies. Ou, se o dano for grande, ela poderá sofrer de “crises nervosas” nas quais o corpo de outro ser vivo em sua proximidade será o alvo de sua fúria.

Com essa explicação, não estou desculpando a mulher. Tento apenas dirigir o olhar para algo que está lá atrás, e para algo que está lá na frente. Se maltratamos as pessoas que sofrem de somatofobia, não ajudamos o mundo a ficar mais suave, apenas acrescentamos mais fissuras às mentes já suficientemente rachadas. Ao “encenar” a violência, o violentador está no palco. Sua forma de nos contar como é que se violenta é encenando a brutalidade contra o corpo de um animal indefeso. Ele nos conta que “sabe” como se faz isso. E nós ficamos ali, pateticamente, assistindo, ou aplaudindo? Não. Terminada a encenação, precisamos perguntar: “Como é que você aprendeu a fazer isso?” Há estupradores, nas penitenciárias, que levam mais de cinco anos de terapia para finalmente admitirem que foram violentados por seus pais, avós, tios, professores, padres, quando tinham exatamente a idade de suas vítimas. E, infelizmente, ainda há outros que não podem confessar sua participação passiva naquelas cenas, porque quem abusou deles na infância não foi nenhum homem, mas uma mulher, também da família. Mulheres também são capazes de abusar sexualmente de seus meninos. Mas isso ainda é tabu ao redor do mundo. Ninguém fala disso. Fala-se que elas espancam os filhos. Mas há as que não “espancam”. As que praticam sexo mesmo.

Enfim, nos vinte anos em que estudo a violência somatofóbica, o que aprendi é que precisamos dirigir nosso olhar para a rachadura na estrutura moral e afetiva da pessoa violenta, tanto quanto precisamos dar cuidados à violentada. Essa rachadura não se deve à pobreza, como muitos tentam nos convencer. Ela é de ordem afetiva, moral, emocional e física. Está gravada ferrenhamente em cada célula do corpo, por isso a razão sai de cena, quando alguém é atormentado por um problema estressante. E o pseudoalívio vem quando a pessoa descarrega a raiva num objeto com o qual aprendeu a relacionar-se como coisa, o corpo do outro, que serve de saco de pancada. Nós vivemos numa sociedade somatofóbica. Tudo é “resolvido” destruindo-se o corpo do outro, ou o próprio.

Que essa mulher teve uma crise nervosa, lá isso teve! Ninguém feliz e calmo faz isso. Mas daí a concluir que é “normal” descarregar a fúria no corpo de um animal, mulher ou criança, por conta do esgotamento emocional, há milhas e milhas de distância. Só os esgotados que foram vítimas da violência física ou abuso emocional reagem com fúria contra o corpo de alguém indefeso. Isso é somatofobia. Uma das formas de linguagem mais comum da violência.

Fonte
http://www.anda.jor.br/17/12/2011/matando-seu-cao-de-%E2%80%9Cestimacao%E2%80%9D

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Reflexão do Movimento SOSBICHO

A despeito da violência cometida contra este animal, por uma mãe, diante de sua filha, o que realimenta um aprendizado de violência contra o outro, um vulnerável,  mãe que potencialmente replica violência já recebida, também gera outro tipo de especulação e nos aponta indicadores: estudos têm demonstrado que  violências cometidas contra animais antecedem as violências cometidas contra crianças, contra velhos, contra os menos defesos.

Ou em outra configuração, quem comete violências contra animais, também pode estar cometendo contra seres humanos.

Há referências aos borbotões pela internet afora: clique, por exemplo, "crueldade com animais versus violência contra mulheres", ou "crueldade com animais como indicador de violência humana".

Ou em teceira configuração: começa-se a violência pelo mais vulnerável ou por aquele que na escala de valores de quem agride é o que vale menos. Que pode ser qualquer ser da natureza, não-humano de preferência, em face da valoração antropocêntrica que é dominante em nossa civilização, a qual coloca o ser humano acima de outros seres e faz do outro, o seu instrumento e uso. Agredir quem vale menos é mal maior na visão antropocêntrica.

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